O MIAA é a casa das memórias, mas também dos olhares sobre o futuro
Luiz Oosterbeek
O MIAA - Museu Ibérico de Arqueologia e Arte está instalado no Convento de S. Domingos, edificado no século XVI, peça central do património edificado da cidade de Abrantes. Os acervos municipais de arqueologia e arte do Município de Abrantes e da Coleção Estrada, bem como a obra da pintora Maria Lucília Moita, aguardavam um lugar digno para se tornarem de fruição pública. Para a concretização desse bom encontro, o edifício foi reabilitado para funções museológicas, através de um projeto do arquiteto Carrilho da Graça. O MIAA ocupa parte significativa do antigo convento, que já albergava a Biblioteca Municipal António Botto, numa ala requalificada em 1993, com projeto do Arquiteto Duarte Castel-Branco.
As exposições permanentes, com projeto de museologia de Luiz Oosterbeek e Fernando António Batista Pereira, concebido em estreita parceria com o Serviço de Património e Museus do Município, estão organizadas em oito núcleos: Escultura Romana; Pré-História; Idades do Bronze e do Ferro; Antiguidade; Tesouro; Arte da Idade Média e Idade Moderna; Escultura da Idade Média e do Renascimento em Abrantes; Pintura de Maria Lucília Moita. A museografia e o design de comunicação são obra da P-06.
A deslocação pelas salas com exposições permanentes permite revisitar múltiplas culturas e civilizações, através do contacto com artefactos e obras de arte da Pré-História à Época Contemporânea. O arco temporal coberto pelos acervos expostos no MIAA, resultantes desde a ação dos primeiros hominídeos até ao presente, faz deste um espaço expositivo único a nível nacional.
No MIAA conta-se muito do que foi a história da ocupação humana na região. Os acervos regionais encontram-se expostos num diálogo constante com peças provenientes de contextos mais abrangentes, que cobrem a Europa, a bacia do Mediterrâneo e diversas civilizações antigas do continente asiático. Reconstituem-se, deste modo, contextos históricos que permitem ao visitante uma melhor compreensão do passado.
O cruzamento do discurso da arqueologia e património histórico com a arte contemporânea assume-se como porta que liga o passado com o presente e que abre caminhos para o futuro. Em duas salas do MIAA são exibidas, consecutivamente, exposições temporárias com obras da Coleção de Arte Contemporânea Figueiredo Ribeiro, que se encontra à guarda do Município de Abrantes.
As restantes salas de exposições temporárias destinam-se a acolher exposições diversas com peças/obras relevantes.
Traduzindo o espírito do lugar, no claustro conta-se a história do Convento de S. Domingos, bem como a história de Abrantes. Bem-vindos ao Museu Ibérico de Arqueologia e Arte!
Os prémios
Museu do Ano 2023 - APOM
No dia 26 de maio de 2023, a Associação Portuguesa de Museologia (APOM) anunciou e entregou ao Museu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes o prestigiado galardão Museu do Ano. A APOM justificou a escolha "pela junção entre o património cultural arqueológico e a requalificação de um edifício histórico, tornando-o um projeto de grande qualidade na área da recuperação territorial, que muito dignifica o país".
Nuno Teotónio Pereira
O projeto de requalificação do Convento de S. Domingos, para instalação do Museu Ibérico de Arqueologia e Arte, foi distinguido, no dia 30 de janeiro de 2023, com o Prémio Nuno Teotónio Pereira 2022, na vertente de Reabilitação Urbana de Edifício de Equipamento, do IHRU – Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana. O projeto de requalificação do Convento é da autoria do arquiteto Carrilho da Graça, foi promovido pelo Município de Abrantes e executado pela empresa Teixeira, Pinto & Soares, S.A.
Recolhida desde os anos vinte do século XX, apresenta, entre outros acervos de interesse, uma evolução da escultura portuguesa do século XV ao século XVIII, assente em peças oriundas das seculares igrejas e conventos extintos de Abrantes, com especial relevância para um importante núcleo de escultura sacra em pedra, madeira e terracota, cuja representatividade vai desde o final da Idade Média ao Barroco.
A coleção exposta integra parte do interessante espólio de arqueologia da Coleção Municipal de Arqueologia, proveniente de sítios arqueológicos da área do concelho de Abrantes. Estas peças são oriundas, maioritariamente, de escavação, prospeção ou acompanhamento de obra, constituindo um fundo de potencial interesse para a investigação, tendo em conta os seus contextos bem documentados. Esse manancial de informação foi registado na “Carta Arqueológica de Abrantes”, datada de 2009 e atualmente em atualização.
Existem ainda algumas peças resultantes de achados fortuitos realizados ao longo do tempo e que integravam o espólio à responsabilidade do antigo Museu D. Lopo de Almeida.
Foi sobretudo a partir dos anos 90 do século XX que se iniciaram os trabalhos arqueológicos sistemáticos no concelho de Abrantes, quer através do recém criado Gabinete de Arqueologia, quer através de investigadores que se interessaram pela longa história do território ou recolhidos e estudados por empresas de arqueologia na sequência de obras públicas orientadas por outras entidades.
Os acervos da Coleção Estrada resultam da reunião de peças pelo colecionador João Estrada (1923-2018), através da aquisição a privados ou em leilões. Trata-se de um conjunto alargado de peças que garante a definição de um discurso museográfico que põe em diálogo a história peninsular e do continente europeu com o mundo mediterrânico e com múltiplas civilizações asiáticas.
Nascido em S. Miguel do Rio Torto, concelho de Abrantes, João Estrada desde muito novo desenvolveu interesse pelo colecionismo de peças de arte e antiguidades, que sempre procurou acompanhar com o necessário estudo. Ao longo de mais de 50 anos, reuniu peças de arte, de arqueologia e antiguidades.
Enquanto presidente da Fundação Ernesto Estrada, Filhos assinou, em 2007, um protocolo com a Câmara Municipal de Abrantes, através do qual disponibilizou a sua coleção de arqueologia e arte para que fosse tornada pública por via da criação do Museu Ibérico de Arqueologia e Arte (MIAA). Esse protocolo foi reconfirmado, em 2016, através da celebração de um contrato de comodato entre o Município de Abrantes e a administração da Fundação Estrada. É constituído por cerca de 1500 peças o acervo cedido ao Município, estando atualmente expostas no MIAA perto de metade.
Não se tratando de peças contextualizadas, como acontece em muitas coleções arqueológicas, a estratégia definida desde o início, por acordo entre os parceiros, foi a da realização de um processo de investigação sistemática, constituindo-se uma equipa multidisciplinar de especialistas. Ao longo dos últimos anos, fizeram-se vários estudos das peças, dos quais resultaram vários redimensionamentos do acervo protocolado, bem como a redefinição da museografia e do circuito expositivo.
Como resultado da investigação realizada, iniciaram-se, em 2009, as exposições anuais de antevisão do futuro museu, que tiveram 10 edições, complementadas com a publicação dos respetivos catálogos, que se assumiram como ações promocionais dos acervos das coleções a expor (Estrada, Maria Lucília Moita e Municipal).
Entre 2011 e 2015, realizaram-se, anualmente, as Jornadas Internacionais do MIAA, reunindo em Abrantes investigadores e estudiosos, nacionais e estrangeiros, que trabalharam em áreas relacionadas com os acervos do museu. Dessas jornadas resultou a edição de vários volumes de atas.
Maria Lucília Moita (1928-2011) nasceu em Alcanena, mas tornou-se abrantina de coração, pois fixou-se em Abrantes em 1954, depois de casar. Ao longo de cerca de seis décadas, aqui desenvolveu um itinerário criativo, nas artes plásticas e na literatura.
O seu atelier sempre se abriu a visitas, sobretudo de grupos escolares, que tinham a oportunidade de dialogar com a artista, receber as suas lições e conhecer o seu percurso.
Prima do grande colecionador de arte Anastácio Gonçalves, na sua casa em Lisboa, antigo atelier de José Malhoa, aprende, nas suas próprias palavras, «a ver e entender a pintura com este homem sensível e exigente». Tem as primeiras lições com o mestre naturalista João Reis e forma a sua sensibilidade no ambiente da coleção de Anastácio Gonçalves, face a pintores naturalistas que admira, aí largamente representados, como Silva Porto e Henrique Pousão. A sua obra evolui a par das grandes correntes do século XX, mas sempre na procura de uma linguagem própria. Do naturalismo inicial, às marcas do impressionismo e a um abstracionismo multifacetado, que se expressa em obras que vão da captação da paisagem, da textura, espírito e forma de velhas árvores, às superfícies de muros em ruínas ou à exploração da possibilidade de ver além da superfície, sobretudo na fase duma pintura celular a que Lima de Freitas designou “orgânica”.
Reconhecida pelos grandes críticos, historiadores de arte e intelectuais, Maria Lucília Moita é uma figura maior do paisagismo, da natureza-morta, do desenho a carvão, do retrato, do abstracionismo orgânico, ou do desenho a lápis e pastel a que chamava «poemas a lápis-de-cor».
Publicou quatro livros de poesia, a qual foi simultaneamente expressão e explicação duma “poética da inquietude” que sempre manifestou, quer na poesia, quer na pintura. Está representada no Museu do Chiado, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Casa Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Museu José Malhoa, Museu de Setúbal e outros.
Esta doação ao Município de Abrantes é um grande serviço à comunidade e resulta da vontade de manter a integridade do seu percurso e da generosidade de, para sempre, o abrir aos outros.
Curadoria
Fernando António Baptista Pereira
Obras da Coleção Figueiredo Ribeiro
11.03.23 — 19.11.23
A exposição concentra a sua escolha sobre núcleos seriais, ou conjuntos de obras, que radicam numa lógica de continuidade de trabalho dos artistas que a Coleção acompanhou e que reforçam a sua presença, e a dos processos diversificados da sua prática, no acervo.
As duas salas são diferenciadas em termos de dimensão e de solução arquitetónica, apresentando-se obras de assinalável dimensão e importância histórica na sala mais pequena, em contraponto com a sala maior, onde decorre a exposição de conjuntos significativos e pouco mostrados de obras, organizados por autor, como um fragmento do arquivo que é o acervo da Coleção.
Independentemente dos temas e disciplinas artísticas presentes, a seleção concentra-se sobre a paisagem e a figura humana, percorrendo diferentes gerações de artistas, entre a abstração, a figuração e a arquitetura, propondo abrir campos de interpretação do espectador através da pintura, do desenho, da gravura, da fotografia e da escultura, com uma escala proporcional ao corpo ou, inversamente, reduzida na representação escultórica, e no desenho procurando convocar a atenção do olhar do espectador. A diferenciação da escala das obras em duas salas diferentes propõe, para o espectador, uma relação de envolvimento quase imersivo, por um lado, e por outro um percurso discursivo que acompanha a arquitetura de uma das salas, marcada pela luz natural. Acerca do arquivo, enquanto acervo colecionado, uma coleção é uma estratificação de uma linha temporal, no seu todo e em cada núcleo disciplinar, essencialmente no lugar onde reside, onde se encontra. Sob este aspeto, a exposição decorre no museu que é contíguo à Biblioteca Municipal António Botto, localização e proximidade à qual podemos associar esse sentido de um lugar de pertença que é comum a todos os objetos artísticos, iconográficos, simbólicos, literários e outros que constituem um património cultural que se propõe à comunidade na atualidade, que nos é coeva. Ou seja, que nos é contemporânea enquanto casa e lugar de conservação e, assim, da memória, do estudo e da fruição, no sentido que Derrida lhes atribui, do grego arkheion, como um domicílio, ou endereço*.
Ao visitar o arquivo, como metáfora da experiência expositiva, vamos observar obras inéditas, aquisições recentes, mas também obras revisitadas, numa seleção que não se pretende abrangente, porém sinaliza a diversidade do acervo, como um arquivo que vai desenhando um mapa da criação artística contemporânea.
João Silvério
*No seu livro Mal d’Archive Jacques Derrida distingue especificamente esta característica espacial do arquivo: “le sens de «archive», son seul sens, lui vient de l’arkheîon grec: d’abord une maison, un domicile, une adresse, la demeure des magistrats supérieurs, les archontes, ceux qui commandaient. (...) les archives ne pouvaient se passer ni de support ni de résidence”. Jacques Derrida, Mal d’Archive, Paris, Éditions Galilée, 1995, pp. 12 e 13.
Artistas
Alberto Carneiro, Albuquerque Mendes, Alexandre Baptista, Ana Caetano, Ana Jotta, Ana Manso, Ana Pérez-Quiroga, Ana Vidigal, Ângela Ferreira, Carla Cabanas, Carla Rebelo, Carlos Alberto Correia, Constança Arouca, Domingos Rego, Edgar Massul, Fátima Frade Reis, Fernão Cruz, Isabel Baraona, João Tabarra, Julião Sarmento, Nuno Nunes-Ferreira, Susana Mendes Silva, Tiago Alexandre, Vasco Araújo.
Curadoria
João Silvério
28.10.23 - 30.03.24
Gil Teixeira Lopes, desaparecido em finais de 2022, aos 86 anos, foi um Professor Catedrático de Pintura na ESBAL, Escola Superior de Belas Artes de Lisboa — hoje Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa — que marcou, através do seu magistério exigente, várias gerações de artistas formados nessa escola. Foi, também e sobretudo, uma figura central da pintura portuguesa, destacando-se na geração que se revelou e afirmou durante a década de 1960, tendo-lhe sido atribuídos, desde então, vários prémios e distinções nacionais e internacionais. O seu excecional e inovador trabalho como gravador foi internacionalmente reconhecido e premiado ao longo de décadas, de 1970 ao início do século XXI. Menos conhecidas, embora tenham sido apresentadas em numerosas exposições, são as suas esculturas, que acompanham as dimensões figurativas da sua pintura e gravura.
Partilhou, durante cinquenta anos, o atelier e o próprio ensino da pintura e da gravura na ESBAL com a pintora Matilde Marçal, com quem expôs recorrentemente nas últimas décadas. Nesta primeira exposição após o seu falecimento, decidimos apresentar uma escolha dos dez últimos anos da sua produção pictórica, principalmente grandes e médios formatos, a que se acrescentam algumas esculturas, num diálogo, uma vez mais, com a pintura de Matilde Marçal, presente em duas outras salas.
A obra pictórica de Gil Teixeira Lopes, ao longo dos seus mais de sessenta anos de atividade criativa, é marcada por uma forte dimensão espacial em que cor e desenho e até mesmo a geometria se harmonizam. Desde sempre a sua pintura integrou expressões figurais predominantemente, mas não exclusivamente, baseadas na imagem do corpo feminino, quer em dimensões sensuais e eróticas, quer em visualizações dramáticas coletivas que expressam dor e até terror. O espaço compositivo é dominado por grandes planos de um monumental e vibrante cromatismo, inicialmente por vezes matérico, que, a partir de certo momento, passou a ser dominado por tonalidades quase lisas de vermelho, mas também por outras tonalidades, como o negro ou o azul, cores que por vezes se tornam dominantes.
Ao longo do século XXI, os elementos figurais tendem a diminuir a sua presença, anteriormente de carácter quase sempre axial, pela multiplicação e quase dissolução no magma cromático, assim como, noutras composições decididamente abstratas, o trabalho da cor se liberta de constrangimentos anteriores e se solta numa reinvenção do gestualismo, em que as diferentes e às vezes insuspeitadas tonalidades, a mancha, as pinceladas, as velaturas, o desenho, os escorrimentos e os drippings dialogam entre si, numa liberdade de fatura de quem, no termo de um percurso brilhante, mas também doloroso e, por vezes, torturado, no constante fazer e refazer das obras, está fenomenologicamente diante e dentro da pintura.
A seleção de obras para esta exposição antológica privilegiou uma certa diversidade de muito grandes, grandes e médios formatos e, sobretudo, documenta as mudanças sensíveis na abordagem compositiva que assinalámos, mostrando a lenta, mas segura, construção da linguagem final de Gil Teixeira Lopes, ao longo do século XXI, em que o mestre desbravou, uma vez mais, novos caminhos para a pintura, reinventando, numa lógica de metapintura, a possibilidade de uma nova abstração gestual para o nosso tempo, tão eficaz, afinal, na criação de estados emotivos sobre o mundo contemporâneo quanto outras poéticas da contemporaneidade, baseadas quase exclusivamente numa importação conceptual do real e da realidade.
A presença das esculturas, expostas no exterior da sala, no corredor do claustro, e marcadas pela ostensiva fragmentação da representação da figura humana, evoca uma presença figural que, mesmo em algumas obras dessa fase final, nunca desapareceria do elenco dos recursos expressivos do autor. E isto porque Gil Teixeira Lopes nunca abdicou de fazer “falar” a sua pintura no contexto das complexas realidades dramáticas do mundo contemporâneo e, para tal, a figura ou as figuras segmentadas ou multiplicadas em esgares de dor e de terror pareceram-lhe quase sempre indispensáveis, agora já sem a dimensão dominantemente erótica anterior, mas com essa multiplicidade dramática ou até em fragmentação ou dissolução.
A organização do percurso expositivo, seguindo o movimento dos ponteiros do relógio para quem entra na sala, favorece uma certa sequência cronológica, respeitando igualmente certos núcleos mais temáticos. Partimos das Tábuas para a Liberdade, que nos evocam, como numa grande síntese, toda a obra anterior de Gil Teixeira Lopes, para chegar ao exaltante Para um Inferno (estudos), que o mestre fez e refez ao longo dos seus últimos anos e que concebeu deliberadamente inspirado no famoso e intrigante Inferno quinhentista português hoje no Museu das Janelas Verdes, em Lisboa (quanto a nós, uma predela de um gigantesco e desaparecido Juízo Final de Jorge Afonso, para a Charola de Tomar). Pelo meio, encontramos vários grandes formatos, incluindo dois tondi de dois metros de diâmetro cada, mostrando a predileção do pintor por espacialidades compositivas e gestuais que se resolvem nas grandes escalas, desenrolando-se, nos intervalos das janelas que nos projetam para a paisagem abrantina do Tejo, as “paisagens da pintura” com que Gil Teixeira Lopes reinventou um caminho novo para a abstração neste primeiro quartel do século XXI. Especialmente nessas obras, mas de um modo geral em todas as que selecionámos e apresentamos na sala, o mestre evidencia um completo à-vontade nas escolhas cromáticas e ostensivamente matéricas, como se finalmente se achasse liberto de escolhas anteriores, marcadas por constrangimentos figurativos e de execução que adquirira há décadas e com que, agora, dialoga, com a total liberdade de quem já está no akmé da sua sabedoria pictórica (técnica) e pictural (ontológica).
Não se pense que esse verdadeiro e quase místico cume da montanha foi atingido sem dúvidas e interrogações, sem experimentações variadas, em muitos casos fruto de reflexões muito próprias sobre a própria história da pintura, e, finalmente, sem a dolorosa experiência do fazer e refazer das obras, muito acentuada nos últimos anos. Também não se fez sem olhar, uma vez mais, para o que se passava à sua volta, no mundo, mas também no atelier que partilhou com Matilde Marçal durante cinquenta anos, ao reconhecer no trabalho da pintora, noutras escalas e formatos, noutras temáticas que nunca o motivaram, novos caminhos no tratamento da cor e da matéria que seguramente o sugestionaram e impulsionaram a abrir a possibilidade de uma nova abstração gestual para o século XXI.
Fernando António Baptista Pereira
Artista
Gil Teixeira Lopes
Curadoria
Fernando António Baptista Pereira
28.10.23 - 30.03.24
Matilde Marçal, pintora natural de Abrantes, apresenta uma seleção de obras realizadas nas últimas duas décadas. Professora de Pintura e de Gravura na ESBAL, Escola Superior de Belas Artes de Lisboa — hoje Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa — partilhou, durante cinquenta anos, o atelier e também o ensino dessas disciplinas com o Professor Catedrático de Pintura dessa escola Gil Teixeira Lopes, recentemente falecido, com quem expôs recorrentemente ao longo de quase todo esse período. Uma vez mais, esta exposição acontece num diálogo interpelante a vários níveis com a pintura da última década de Gil Teixeira Lopes, presente numa outra sala do museu. Nesta exposição, Matilde Marçal apresenta uma escolha muito significativa da sua vasta produção dos últimos dez/quinze anos, principalmente constituída por vários conjuntos formados por diversos pequenos e médios formatos, interessantes variações sobre o quadro múltiplo numa recriação totalmente contemporânea do modelo “retabular”, abrangendo, por seu turno, três distintos universos temáticos que remetem para memórias de lugares, de atmosferas e de coisas, incluindo as referências a esses motivos na própria história da pintura.
Começando pelo vasto conjunto de obras expostas nas duas salas, constatamos que várias são composições individualizadas que se podem ou não emparelhar com outra ou com outras, formando “dípticos” ou “trípticos”, enquanto a maioria dos casos é constituída pelos conjuntos claramente múltiplos a que chamámos “retabulares”. Já quanto aos títulos atribuídos a todas essas obras pela autora, verificamos que predominam as expressões que incluem as palavras paisagem e natureza, logo seguidas das que integram os termos espaços, lugares, tempo ou instante, para se fixar, finalmente, nas que nos propõem murmúrios, silêncios, elegia poética, imaginário, perceção ou sentir.
Daqui decorre, a nosso ver, que, para Matilde Marçal, o ato de pintar e a pintura que dele resulta tornam-se, ao longo da sua obra, mas sobretudo na exposição que nos apresenta, a expressão plástica superior de uma deambulação por memórias e sentimentos em que se confundem arquivo de imagens e reminiscências de presenças físicas, coisas e lugares vividos ou sentidos, e, por fim, sensações poéticas diante da realidade ou do real, a partir de um imaginário que se alimenta dessas e de outras instâncias. Em suma, tal como definimos na síntese de referências que propomos no título deste texto: Impressões, Lugares e Coisas.
Não foi, necessariamente, a partir dos títulos das obras, que, a bem dizer, só recebi depois da seleção feita, que cheguei a estas últimas formulações, mas sim quando estava a examinar, com a autora, as propostas de obras e conjuntos que sugeria para a exposição que consegui caracterizá-las desse modo. Ao expressar essa minha visão à própria autora, recebi a sua total concordância.
Por outro lado, em todo esse processo de seleção, dei-me conta de que, na pintura de Matilde Marçal, havia uma tensão subjacente à sua dimensão expressiva que fazia confrontar o forte sentimento do lugar, da atmosfera ou das coisas, tanto oriundo da lembrança da presença física como da exploração do “arquivo” de memórias, incluindo as da história da pintura, com a geometria organizativa das composições, que é evidente na quadrícula que estruturou no passado e ainda estrutura muitas das obras presentes nesta exposição, como “quadros dentro do quadro” ou ecrãs dentro do ecrã que é cada pintura. Essa mesma geometria organizativa torna-se, igualmente, reminiscente naquilo que é a própria estruturação “retabular” dos conjuntos múltiplos.
É, sem dúvida, essa tensão subjacente à imaginação criativa de Matilde Marçal que constitui a maior novidade das propostas apresentadas: a regularidade compositiva e a clareza formal sugeridas pela geometria subjacente é frontal e interiormente compensada pelo caráter difuso e expansivo, orgânico e por vezes visceral, quase sempre abstrato e matérico, dos motivos evocados, sejam eles “paisagens” da natureza e da pintura ou memórias do seu tratamento por mestres reverenciados (Corot, Turner, predominantemente), reencontrados em “atmosferas” e em “lugares notáveis”, ou naturezas-mortas reencontradas nas “coisas” escolhidas para serem figuradas.
Matilde gosta, também, de trabalhar por séries, esgotando em variações que diríamos quase musicais essas “atmosferas” ou esses “lugares notáveis” da história da pintura, incluindo as “coisas” da natureza-morta, sejam eles as citações das obras dos Mestres ou os próprios “géneros” revisitados e reinventados. As variações expressam-se através de uma infinita capacidade de reinvenção compositiva dos motivos e das espacialidades em que eles se projetam, quer numa focalização mais próxima, quer numa dissolução abstrata e matérica. Quase sempre, essas duas tendências, aparentemente contraditórias, convergem e harmonizam-se na mesma composição, mostrando, uma vez mais, a extraordinária capacidade que a pintura de Matilde Marçal tem de realizar a “coincidência dos opostos”...
Há, também, uma outra constante na capacidade de variação serial, que reside preferencialmente nas escolhas das tonalidades cromáticas, numa gama que privilegia os verdes e azuis nas abordagens abstratas e matéricas das “paisagens” e os ocres e as terras nas subtis reinvenções da natureza-morta. Escassa utilização do vermelhão, a não ser nas combinações exigidas por certos tons, ou em apontamentos isolados, muito precisos, muitas vezes como dripping, que o tornam particularmente estridente no conjunto.
À primeira vista, dir-se-ia que o ponto de vista adotado nas abordagens dos três núcleos temáticos segue a tradição instaurada pelos géneros históricos, que aqui é simultaneamente citada e reinventada: enquanto nas “atmosferas” e nos “lugares” esse ponto de vista privilegia amplas espacialidades “vistas de longe”, no que seria uma visão tradicionalmente “masculina”, nas “naturezas-mortas” o ponto de vista torna-se próximo, intimista mesmo, numa abordagem tradicionalmente “feminina”. Contudo, a pintura de Matilde Marçal logra, como já vimos atrás, uma fusão de “opostos” através do seu modo muito peculiar de reescrever a abstração e o carácter matérico do gesto pictural, tornando próximo e palpável o que, no motivo, parece “distante” ou, pelo contrário, dissolvendo nas espacialidades infinitas o que parecia, na representação, concreto e definido. E, assim, aliando conceptualização e oficina requintada, a pintura de Matilde Marçal escreve, em plena era da explosão imagética e digital, mais uma página no amplo movimento da metapintura, alargando, como ainda não tínhamos visto, as possibilidades de existência e de afirmação, hoje, da própria pintura.
Fernando António Baptista Pereira
Artista
Matilde Marçal
Curadoria
Fernando António Baptista Pereira
Imóvel do século XVI que, para além da ocupação religiosa, desempenhou funções militares (quartel e hospital militar), de ensino e assume-se como espaço marcante de dinamização cultural.
Fundado originalmente noutro local, cerca do ano de 1450, o Convento de São Domingos foi transferido duas vezes até ao início do século XVI, por motivos de insalubridade dos terrenos onde estava implantado. Em 1509, o prior do convento, Frei João de São Vicente, obteve autorização para dar início à edificação de um terceiro complexo conventual na zona alta da vila, ficando este concluído em 1517.
Em 1534, D. Fernando, Infante de Portugal e Senhor de Abrantes, filho do rei D. Manuel I, nascido em Abrantes em 1507, protetor de Francisco de Holanda, foi sepultado na capela-mor do Convento de São Domingos. No mesmo ano, foram sepultados no convento três outros elementos da família real, dois filhos do Infante D. Fernando e a esposa, Infanta D. Guiomar Coutinho.
Em 1798 uma parte do complexo conventual foi cedida para aquartelar as legiões do Marquês de Alorna. Em 1801, acolheu o Regimento do Conde de Lippe, no âmbito da Guerra das Laranjas, prelúdio da Guerra Peninsular. No ano de 1810, no decurso das Invasões Francesas, uma parte do convento foi transformada em hospital militar. Alguns anos mais tarde, em 1834, com a extinção das ordens religiosas, os frades dominicanos começaram a abandonar o espaço.
O século XX ficou ainda marcado pela ocupação militar do edifício. Em 1916, daqui foram mobilizadas tropas do 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 22 para integrarem o Corpo Expedicionário Português, que partiu para a I Guerra Mundial no início de 1917. O Regimento de Infantaria 2 instalou-se no antigo convento em 1918, tendo aqui permanecido até ser transferido para Vale de Roubam, ainda que tenha continuado a ocupar as instalações por mais alguns anos.
Daqui em diante, o edifício teve essencialmente funções educativas e culturais. Em 1968, estabeleceu-se aqui o Ciclo Preparatório de Abrantes, aquando da sua inauguração. Em 1970/71, desenvolveram-se no edifício múltiplos eventos no âmbito das duas edições das Jornadas Culturais. Ainda em 1971, esteve patente no antigo convento a exposição sobre pintura portuguesa do século XVI intitulada “Mestres de Abrantes e Sardoal”, inaugurada pelo Presidente da República Américo Tomás. Em 1983, instalaram-se no edifício a Biblioteca Fixa n.º 134, da Fundação Calouste Gulbenkian, e o Arquivo Histórico Municipal. Dez anos depois, em 1993, abriu a Biblioteca Municipal António Botto, projeto do arquiteto Duarte Castel-Branco. No ano de 1995, a Palha de Abrantes – Associação de Desenvolvimento Cultural foi constituída no antigo convento e aqui teve as suas primeiras instalações. O edifício acolheu ainda o Jardim de Infância de S. João Baptista, a Universidade Internacional e algumas salas e laboratórios da ESTA – Escola Superior de Tecnologia de Abrantes.
As escavações arqueológicas que decorreram no decurso da requalificação que visava a instalação do MIAA, projeto do arquiteto Carrilho da Graça, puseram a descoberto vários vãos, vestígios das estruturas mais antigas do primitivo convento. Também se encontrou grande parte da necrópole e áreas de armazenamento de alimentos, com um silo e uma talha, posteriormente utilizada como ossário, tudo do século XVI.
O MIAA – Museu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes foi inaugurado a 8 de dezembro de 2021, ocupando parte significativa do antigo Convento de S. Domingos.
Horário de Funcionamento
Terça-feira a domingo das 10:00 - 12:30 e 14:00 - 17:30. Encerra à segunda-feira e feriados (exceto 14 de junho). Última entrada 30 minutos antes do encerramento.
Visitas Orientadas e Serviços Educativos.(marcação prévia com antecedência mínima de 15 dias para museusdeabrantes@cm-abrantes.pt)
Morada
Jardim da República, 25, 2200-343 Abrantes.
Coordenadas GPS: 39º27’38.6’’N / 8º11’50.7’’W
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