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Impressões, Lugares e Coisas

28.10.23 a 30.03.24

Matilde Marçal, pintora natural de Abrantes, apresenta uma seleção de obras realizadas nas últimas duas décadas. Professora de Pintura e de Gravura na ESBAL, Escola Superior de Belas Artes de Lisboa — hoje Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa — partilhou, durante cinquenta anos, o atelier e também o ensino dessas disciplinas com o Professor Catedrático de Pintura dessa escola Gil Teixeira Lopes, recentemente falecido, com quem expôs recorrentemente ao longo de quase todo esse período. Uma vez mais, esta exposição acontece num diálogo interpelante a vários níveis com a pintura da última década de Gil Teixeira Lopes, presente numa outra sala do museu.

Nesta exposição, Matilde Marçal apresenta uma escolha muito significativa da sua vasta produção dos últimos dez/quinze anos, principalmente constituída por vários conjuntos formados por diversos pequenos e médios formatos, interessantes variações sobre o quadro múltiplo numa recriação totalmente contemporânea do modelo “retabular”, abrangendo, por seu turno, três distintos universos temáticos que remetem para memórias de lugares, de atmosferas e de coisas, incluindo as referências a esses motivos na própria história da pintura.

Começando pelo vasto conjunto de obras expostas nas duas salas, constatamos que várias são composições individualizadas que se podem ou não emparelhar com outra ou com outras, formando “dípticos” ou “trípticos”, enquanto a maioria dos casos é constituída pelos conjuntos claramente múltiplos a que chamámos “retabulares”. Já quanto aos títulos atribuídos a todas essas obras pela autora, verificamos que predominam as expressões que incluem as palavras paisagem e natureza, logo seguidas das que integram os termos espaços, lugares, tempo ou instante, para se fixar, finalmente, nas que nos propõem murmúrios, silêncios, elegia poética, imaginário, perceção ou sentir.

Daqui decorre, a nosso ver, que, para Matilde Marçal, o ato de pintar e a pintura que dele resulta tornam-se, ao longo da sua obra, mas sobretudo na exposição que nos apresenta, a expressão plástica superior de uma deambulação por memórias e sentimentos em que se confundem arquivo de imagens e reminiscências de presenças físicas, coisas e lugares vividos ou sentidos, e, por fim, sensações poéticas diante da realidade ou do real, a partir de um imaginário que se alimenta dessas e de outras instâncias. Em suma, tal como definimos na síntese de referências que propomos no título deste texto: Impressões, Lugares e Coisas.

Não foi, necessariamente, a partir dos títulos das obras, que, a bem dizer, só recebi depois da seleção feita, que cheguei a estas últimas formulações, mas sim quando estava a examinar, com a autora, as propostas de obras e conjuntos que sugeria para a exposição que consegui caracterizá-las desse modo. Ao expressar essa minha visão à própria autora, recebi a sua total concordância.

Por outro lado, em todo esse processo de seleção, dei-me conta de que, na pintura de Matilde Marçal, havia uma tensão subjacente à sua dimensão expressiva que fazia confrontar o forte sentimento do lugar, da atmosfera ou das coisas, tanto oriundo da lembrança da presença física como da exploração do “arquivo” de memórias, incluindo as da história da pintura, com a geometria organizativa das composições, que é evidente na quadrícula que estruturou no passado e ainda estrutura muitas das obras presentes nesta exposição, como “quadros dentro do quadro” ou ecrãs dentro do ecrã que é cada pintura. Essa mesma geometria organizativa torna-se, igualmente, reminiscente naquilo que é a própria estruturação “retabular” dos conjuntos múltiplos.

É, sem dúvida, essa tensão subjacente à imaginação criativa de Matilde Marçal que constitui a maior novidade das propostas apresentadas: a regularidade compositiva e a clareza formal sugeridas pela geometria subjacente é frontal e interiormente compensada pelo caráter difuso e expansivo, orgânico e por vezes visceral, quase sempre abstrato e matérico, dos motivos evocados, sejam eles “paisagens” da natureza e da pintura ou memórias do seu tratamento por mestres reverenciados (Corot, Turner, predominantemente), reencontrados em “atmosferas” e em “lugares notáveis”, ou naturezas-mortas reencontradas nas “coisas” escolhidas para serem figuradas.

Matilde gosta, também, de trabalhar por séries, esgotando em variações que diríamos quase musicais essas “atmosferas” ou esses “lugares notáveis” da história da pintura, incluindo as “coisas” da natureza-morta, sejam eles as citações das obras dos Mestres ou os próprios “géneros” revisitados e reinventados. As variações expressam-se através de uma infinita capacidade de reinvenção compositiva dos motivos e das espacialidades em que eles se projetam, quer numa focalização mais próxima, quer numa dissolução abstrata e matérica. Quase sempre, essas duas tendências, aparentemente contraditórias, convergem e harmonizam-se na mesma composição, mostrando, uma vez mais, a extraordinária capacidade que a pintura de Matilde Marçal tem de realizar a “coincidência dos opostos”...

Há, também, uma outra constante na capacidade de variação serial, que reside preferencialmente nas escolhas das tonalidades cromáticas, numa gama que privilegia os verdes e azuis nas abordagens abstratas e matéricas das “paisagens” e os ocres e as terras nas subtis reinvenções da natureza-morta. Escassa utilização do vermelhão, a não ser nas combinações exigidas por certos tons, ou em apontamentos isolados, muito precisos, muitas vezes como dripping, que o tornam particularmente estridente no conjunto.

À primeira vista, dir-se-ia que o ponto de vista adotado nas abordagens dos três núcleos temáticos segue a tradição instaurada pelos géneros históricos, que aqui é simultaneamente citada e reinventada: enquanto nas “atmosferas” e nos “lugares” esse ponto de vista privilegia amplas espacialidades “vistas de longe”, no que seria uma visão tradicionalmente “masculina”, nas “naturezas-mortas” o ponto de vista torna-se próximo, intimista mesmo, numa abordagem tradicionalmente “feminina”. Contudo, a pintura de Matilde Marçal logra, como já vimos atrás, uma fusão de “opostos” através do seu modo muito peculiar de reescrever a abstração e o carácter matérico do gesto pictural, tornando próximo e palpável o que, no motivo, parece “distante” ou, pelo contrário, dissolvendo nas espacialidades infinitas o que parecia, na representação, concreto e definido.

E, assim, aliando conceptualização e oficina requintada, a pintura de Matilde Marçal escreve, em plena era da explosão imagética e digital, mais uma página no amplo movimento da metapintura, alargando, como ainda não tínhamos visto, as possibilidades de existência e de afirmação, hoje, da própria pintura.

Fernando António Baptista Pereira

Artistas
Matilde Marçal

Curadoria
Fernando António Baptista Pereira

Catálogo
Disponível apenas em versão digital

Arquivo de exposições

Exposições realizadas no MIAA - Museu Ibérico de Arqueologia e Arte:

2021

  • - Objetos Específicos – Parte 1 - Coleção Figueiredo Ribeiro - Curadoria: Ana Anacleto e João Silvério - 08.12.21 a 28.08.22
  • - Memórias Futuras - Coleção de Arte Contemporânea do Estado - Curadoria: David Santos, Manuel João Vieira, Sandra Vieira Jürgens, Sara & André e Comissão de Aquisição de Arte Contemporânea do Estado 2019/20 - 08.12.21 a 03.04.22

2022

  • - Contra-Parede - Ana Vidigal, Nuno Nunes-Ferreira e Pedro Gomes - Curadoria: Hugo Dinis - 23.04.22 a 25.09.22
  • - Da Vinci Simulacrum - Margarida Sardinha - Curadoria: Hugo Dinis - 23.04.22 a 25.09.22
  • - O que fazer? - Martim Brion - Curadoria: João Silvério - 17.09.22 a 12.02.23
  • - Dois Cafés - Luís Paulo Costa - Curadoria: Sara Antónia Matos - 17.09.22 a 12.02.23
  • - Rio - Mestre José Pimenta - Curadoria: Sara & André - 08.10.22 a 26.02.23
  • - As minhas arqueologias - Heitor Figueiredo - Curadoria: Hugo Dinis - 08.10.22 a 26.02.23

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