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Sou eu que desenho os meus pontos de fuga

08.12.23 a 23.06.24

O Homem que deseja gostar de cidades

“Ele pensava que as cidades serviam, sobretudo, para as usarmos e não para sermos usados por elas. Usar a cidade, para ele, era a liberdade que os muitos e diversos interesses, postos lado a lado, acabavam por permitir a todos os cidadãos que quisessem viver bem.” (1)

Presumimos não cair em descuido se, na esfera das relações entre o ser-humano e o mundo natural, instalarmos a construção de uma cerca protegendo o acesso a uma caverna na classe dos mais salientes e instigantes acontecimentos exordiais. Notemos: o gesto que, por proceder da sobrevivência, ancora o ser-humano à sua natureza animal é o mesmo que, por anteceder o aglomerado artificial, inflama a desarmonia da relação. O que une a rudimentar configuração gruta-horto-muralha e o sofisticado complexo urbano é o dom e o poder com que Prometeu nos favorece.

Neste sentido, a cidade instaura um território especulativo, opera a potência fulminante de um face-a-face íntimo: o nosso confronto, enquanto ser que conhece e se conhece, com a persistência dos infatigáveis dilemas e desconcertos da nossa natureza e da nossa relação com o mundo natural. Se a arte põe-em-obra, se desvela uma verdade que instaura e torna cognoscível, o corpo de trabalho de Daniel Nave incita-nos a interrogar a criação assombrosa da cidade e, com mais fervor, o ser que a cria.

Importa debruçarmo-nos sobre a história da consumação de potências inatas e faculdades adquiridas em que nos reconhecemos enquanto animal que produz sentido. Não nos detemos na disputa antiga que opõe o internalismo da razão e o externalismo da sensação; antes, na objetificação que ambas as construções epistemológicas ditam, no acervo de negações e exclusões do mundo natural que acumulam. No longo percurso da obstinada sofisticação da nossa macchina antropologica, ter-nos-emos tornado reféns dos mundos artificiais que erguemos?

Daniel Nave não acentua a cisão. Espaços pretensamente verosímeis são desmantelados, por fragmentação e achatamento, em enredos geométricos comprimidos no constrangimento da superfície. Cenários manifestamente virtuais são insinuados por massas sólidas e compósitos vaporosos que se elevam ou afundam, restaurando a ilusão da profundidade. Num gesto de duplo efeito, o carácter vivo e temperamental da cidade é um pano de fundo sintetizado em formas e forças (2), em luminosidades e mistérios, em matérias e ambientes que demarcam regiões afetivas contrastantes; contudo, comunicantes e — quem sabe? — apaziguadas. Diríamos que, no campo da imagem, entre colapsos e perdurações, Daniel Nave concilia o rigor científico da perspetiva renascentista e o êxtase emocional da subjetividade romântica.

Se, na nossa história enquanto seres cognoscentes, no devir humano, a arte, excedendo o apetrecho, intensifica o requinte da nossa existência entre os entes inumanos, entre as coisas naturais, Daniel Nave furta-se à tendência. Na medida em que não imitam, desembaraçando-se dos saberes que codificam e das exegeses que decifram, estes desenhos e construções alojam a sua alteridade, o resto que os completa e lhes pertence, mostrando-se no mundo entre as coisas enquanto blocos puros de visibilidade, presenças brutas e ostensivas que detêm o seu fora e o seu dentro, o isto-é-em-si de mundos imaginários onde as fronteiras são pulverizadas. Diante deles, somos engolidos e projetados. Vêm tocar-nos a pele e penetrar-nos a carne e, reciprocamente, são o corpo em que nos (re)vemos. Murmurar-nos-á esta osmose a chave do segredo, o escape da existência artificial?

O eloquente silêncio dos mundos imaginários de Daniel Nave não nos desvenda o desfecho da aventura. Neste impasse, Sou eu que desenho os meus pontos de fuga abre-nos a brecha para um espaço de quatro dimensões, uma suspensão de segunda ordem que arrisca a transformação dos próprios processos ontológicos do ser cognoscente e do ser das coisas, que supera a divisão histórica entre sujeito e objeto, entre humano e inumano, entre artificial e natural. Esta constituição do ser desmorona a imobilidade do ser-que-é, reconfigurando-a no movimento do ser-que-se-dá, que se destina enquanto destinável do destinado no seio da doação mútua, do estar presente das presenças, do deixar-estar-presente. O Homem que deseja gostar de cidades é o que deixa estar presente o que não pertence à cidade. “Sem zonas demarcadas, eis a vida” (3).

(1) Dias, Manuel Graça. O Homem que Gostava de Cidades. Relógio d’Água, Lisboa, 2001.
(2) Apropriamo-nos, aqui, do título de uma das séries de trabalhos do artista.
(3) Ibid. i).

Ricardo Escarduça

Artistas
Daniel Nave

Curadoria
Ricardo Escarduça

Catálogo
Disponível apenas em versão digital

Arquivo de exposições

Exposições realizadas no MIAA - Museu Ibérico de Arqueologia e Arte:

2021

  • - Objetos Específicos – Parte 1 - Coleção Figueiredo Ribeiro - Curadoria: Ana Anacleto e João Silvério - 08.12.21 a 28.08.22
  • - Memórias Futuras - Coleção de Arte Contemporânea do Estado - Curadoria: David Santos, Manuel João Vieira, Sandra Vieira Jürgens, Sara & André e Comissão de Aquisição de Arte Contemporânea do Estado 2019/20 - 08.12.21 a 03.04.22

2022

  • - Contra-Parede - Ana Vidigal, Nuno Nunes-Ferreira e Pedro Gomes - Curadoria: Hugo Dinis - 23.04.22 a 25.09.22
  • - Da Vinci Simulacrum - Margarida Sardinha - Curadoria: Hugo Dinis - 23.04.22 a 25.09.22
  • - O que fazer? - Martim Brion - Curadoria: João Silvério - 17.09.22 a 12.02.23
  • - Dois Cafés - Luís Paulo Costa - Curadoria: Sara Antónia Matos - 17.09.22 a 12.02.23
  • - Rio - Mestre José Pimenta - Curadoria: Sara & André - 08.10.22 a 26.02.23
  • - As minhas arqueologias - Heitor Figueiredo - Curadoria: Hugo Dinis - 08.10.22 a 26.02.23

2023

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